Sofrência é um neologismo de nossa língua, a soma de “sofrimento” e “carência”. Não, não estamos acusando uma “dor de cotovelo”, como no popular. Mas referimo-nos à um déficit de teologia, falta de uma experiência prática, fundamentada na Bíblia. A sofrência da teologia é vista ao vivo na vida de alguns personagens que fazem parte das inúmeras comunidades evangélicas. Aqui serão descritas – respeitosamente – aquele sujeito que exibe uma ligação com Deus como filho querido, filhíssimo e queridíssimo, depositário quase que exclusivo da graça, de tal maneira que você, leitor, se sente um “sobrinho de Deus”.
O(a) tal sabe tudo sobre o Espírito Santo. Na prática – conquanto a Teologia mais exposta, mais digerida, mais discutida: Discurso abundante, vida, nem tanto. Vive de "culto quente". Precisa da campanha, da corrente, da vigília, da marcha... Em cada militância ou participação, vive avivamentos episódicos, com prazo de validade. Passado o efeito, precisará de outro evento pra fazer... Vento.
O sujeito vai numa vigília, volta prendendo e arrebentando o inimigo; passado o calor ou efeito da mística, volta ao normal... São arroubos, surtos espirituais. Vive destilando clichês e frases de efeito. Desconhece uma teologia da Bíblia; o pensamento paulino, petrino, neotestamentário, estão sujeito às suas alegorias. Alegorizar é a ordem: Os significados da espada de Gideão, as pedrinhas de Davi, as muralhas de Jericó... pululam em cada experiência.
Sabe dar conselho pra quem quer e pra quem não quer. Sai distribuindo soluções para a vida-de-todo-mundo. Conhece como poucos os bastidores das nuvens, o que há acima do céu. Mas, diante de decisões do cotidiano é confuso, enrolado e perdido. Sabe as fórmulas para os outros, mas para si mesmo...
Na propaganda de sua fé – poderosa e operante, o sujeito surfa sobre uma tsunami, faz pic-nic num vulcão. Mas, ao deparar-se com uma barata, grita pra quebrar vidros. Sabe discursar pra impressionar outros. Ao se deparar com situações alhures, não sabe lidar. No discurso, um bomba; na vivência, faísca!
Deus está presente (inundado, abundante) nas coisas boas, naquilo que dá certo em sua vida: Numa de suas narrativas cheia de efeitos especiais, quando faz exames médicos e comprova tudo bem, normal, é Deus pra lá, Deus pra cá. (Pergunta: Se o exame acusasse problemas de saúde, Deus não estaria?)
Noutro testemunho sobre a presença de crentes no novo ambiente de
trabalho empolga: “Já encontrei alguns irmãos no trabalho. É bênção”. Sim,
porque não saberia ser num ambiente contrário, de incrédulos, onde será exigido
ao se expor. Melhor sentir-se familiarizado e seguro com uma “igreja” lá, do
que ele mesmo, ter de sê-la.
Aliás os testemunhos relatados versam muito mais sobre sí do que o Sagrado. É como insistisse: “Não tem como o Todopoderoso não me abençoar, afinal...”
Junto com uma cambada, trupe, ou na companhia dozirmãos, afirma, reafirma e é super, hiper, mega, crente de vitrine. Sozinho, dá vexame. Por isso é afeito à marchas, baladas gospel e que tais. Comsoutros não tem pra ninguém; mas sozinho...
“Deus me disse”; “Deus falou”; “Deus revelou”. A ligação é direta. A
qualquer hora do dia ou da noite, lá está o Senhor falando com ele. O sujeito
sabe a agenda dos anjos. O negócio é mais e sempre com Deus. É menos com as
pessoas. Não é de suportar pessoas, grupos, ambientes plurais. É Deus on
line! (A quem dará ouvidos e receber conselhos, se já tem negócios exclusivos
com o Todopoderoso? A quem se submeterá? Liderada pela própria intuição.)
Parece que pra eles e elas, da sofrência, a fé sem discurso é morta. É muita fala
sobre a fé e sobre Deus! O sabe-tudo sobre a espiritualidade dos outros é
prolífero em falar, descrever, interpretar e predizer. Na bitola opina sobre
tudo e sobre todos: Não escapa ninguém.
Na lógica (se podemos assim dizer) tudo é muito rápido e mágico. O que pra um comum é processo – etapas, tempo, iniciativa, planejamento... pra ele é passe de mágica, ops!, de fé. Decretou, afirmou, tá feito!
Problemas, crises, aflições? Não são experiências humanas, são provas. “Prova” é a série com que o Sagrado lida com ele(a). É outra categoria, acima e além dos problemas, crises e aflições dos comuns.
A carreira profissional – pra ser generoso – é entrecortada. Constantes trocas de emprego. Experiências curtas. Ora porque sente-se perseguido. Ora porque “Deus tem algo melhor pra mim”. Ou porque Deus falou no coração que deveria sair. Mística pura. Na verdade, o sujeito lida com principados, potestades, legiões e exércitos inteiros do inimigo. Mas tem dificuldades de ser cobrado ou de encarar um gerente que lhe cobra produtividade.
Descreve falanges de demônios, estratégias e manejos sobrenaturais do Diabo; mas não sabe enfrentar uma entrevista de emprego. Já sabe tudo sobre o céu. Só precisa saber sobre... a terra. Precisa ser alertada que esse detalhe, a terra, está antes do céu.
Esse(a) que é guerreiro(a) da justiça e luz do mundo. Reclama do governo, da corrupção dos políticos, mas vê como bênção a mãozinha e o jeitinho de outros irmãos que lhe fizeram sair da fila, passar na frente ou ser privilegiado nalgum pleito. Ao ser passado pra trás, reclama; ao ser ele a ser conduzido pra frente, atropelando a lista de espera, profere discursos de bênçãos e cuidados de Deus.
O gueto é seu habitat. Atrai crentes. Procura crentes. Consome crentes. Assiste filme crentes. Na rua procura crentes, lanchonete crentes. É missionário. Mas só lida com crentes. Porque só atrai, só busca crentes. É sal do sal. É luz da luz. Entendeu?
A sofrência é o desconhecimento bíblico. Do analfabetismo mais clássico. É a mística e a experiência que dão suporte ao discurso. Que discurso! Personas assim tem muito de dependência emocional. E infantilidade. Tem muito de superficialidade vendida como sólida. Muita fumaça.
A sofrência desconecta o indivíduo do mundo, da vida, da realidade.
Porque a mística religiosa é uma fuga, um refúgio e como não tem condições de lidar com as demandas reais – afetivas, emocionais, psicológicas, o indivíduo movimenta os céus. Alí ele(a) é poderoso.
Porque terá de apresentar habilidades e qualificações e poderá não ser aceito, será aceito e querido por ser alguém que vive perto de Deus. (Quem não precisa de alguém tão crente, não?).
O modelo de fé que privilegia a mística, o sobre-extra-além físico tem sido hegemônico no Brasil. Muitos jovenzinhos, potenciais cientistas, prodigiosos e criativos, tem neutralizado seu apetite juvenil às letras. Tem inibida a fome de concorrer num mercado selvagem. E o resultado disso é o deserto de cientistas cristãos, profissionais bem-sucedidos e destacado numa sociedade aos escombros, que não ocupam espaço nas grandes corporações, na política, nas universidades, onde “o campo é o mundo”. Que pena!
Os críticos do evangelicalismo tem razão porque essa caricatura de
cristão é o produto desta sofrência. Essa teologia faz vítimas. Relegam à
margem verdadeiros candidatos a transformar a sociedade. Precisaremos de uma
geração para que as igrejas – sobretudo as históricas e protestantes, formem
gente pra vida, rompendo uma alienação que aborta talentos. Vamos virar o jogo:
“E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da
vossa mente...” (Rm 12.2). A sofrência é de doer. By Geraldinho Farias
Prezados irmãs(o)s,
ResponderExcluirSeria interessante a leitura da crônica do pastor Geraldinho sobre "nosso" evangelicalismo. Sobretudo se a partir dessa leitura houvesse discussões sobre rumos a tomar, sem aquele ufanismo denominacional de que "nós, batistas" seremos a "Comissão de Frente" no arrebatamento. Não, as presepadas espirituais descritas pelo pastor também as vejo nas igrejas batistas. Destaco um dos últimos parágrafos do texto:
"O modelo de fé que privilegia a mística, o sobre-extra-além físico tem sido hegemônico no Brasil. Muitos jovenzinhos, potenciais cientistas, prodigiosos e criativos, tem neutralizado seu apetite juvenil às letras. Tem inibida a fome de concorrer num mercado selvagem. E o resultado disso é o deserto de cientistas cristãos, profissionais bem-sucedidos e destacado numa sociedade aos escombros, que não ocupam espaço nas grandes corporações, na política, nas universidades, onde “o campo é o mundo”. Que pena! "
Lembrando que o evangelicalismo foi uma resposta ao fundamentalismo bíbilco que por sua vez foi uma tentativa de neutralizar a teologia liberal. Ou seja, a prevalência dos extremismos. O evangenlicalismo que prevaleceu trouxe consigo o DNA do fundamentalismo e um anti-intelectualismo para as igrejas. Francis Schaeffer descreveu que chegaríamos a isso em seus livros que não eram bem vistos na minha juventude. Minha época era a da imersão nos acampamentos "da transfiguração" e dos "chavões evangélicos". Respostas telegráficas para todos os problemas da vida.
Gostaria de ver dos listeiros, pastores e líderes, discussões sobre algo tangencial em suas igrejas para o início de uma mudança. Principalmente nas EBDs (onde houver) ou em reuniões informais com bons condutores (igrejas são formadas também de profissionais liberais, professores universitários, estudantes que podem auxiliar o pastor nesse quesito). Minha pergunta, talvez inconveniente, é se o pastor ou o líder da comunidade estariam dispostos a ceder esse espaço. Acredito que manter uma comunidade de bereanos seja mais saudável do que criação de ovelhas em cercadinhos.
Existe literatura com sugestões melhores que a acima. Destaco três apenas, mas há mais livros tão bom quanto esses: "A mente cristã", Harry Blamires, Shedd Publicações; "O escândalo da mentalidade evangélica" (não vi esse título ainda em português), Snider, Ivpress; "Hábitos da Mente" - O intelectual como um chamado cristão", Sire, Hagnos).
Há muito perdemos o "avant premiére" nas discussões da sociedade moderna e pós-moderna, fruto da separação que fizemos entre "nós" e "o mundo" mas também da retirada sutil do espaço público das religiões (sobretudo a cristã), promovida pelos que veem apenas na Ciência a promotora final da verdade. Sem assumir o "complexo caudal" (a teologia guerreira proclama que devemos ser cabeça e não cauda) das caricaturas descritas pelo Pr. Geraldinho, mas assumir o protagonismo que o Senhor nos legou como chamado em um mundo cada vez mais longe da sua vontade.
Abraços fraternos a todos,
Paulo Z.
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ResponderExcluirPaz meu amigo Geraldino, excelente , profunda abordagem da religiosidade do nosso dia dia.
ResponderExcluirO Alpinista , apresentou uma radiologia, tomografia compoturizada com ressonância magnética digital , no preto e branco e a cores vivas da nossa realidade religiosa. Queremos agora os procedimentos terapeúticos da cura para a "sofrência" da teologia , lembrando que o Mestre dos mestres lidou com fariseus , saduceus , essênios e zelotes que representavam a "sofrência" teologica dos seus dias, e a sua mensagem era a mesma do Batista :O povo, que estava assentado em trevas, Viu uma grande luz; aos que estavam assentados na região e sombra da morte,A luz raiou.
Desde então começou Jesus a pregar, e a dizer: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus.Mateus 4.16-17.
Pr.JBL
Muito bom! É preciso combater essa religiosidade alienatória, que está longe dos princípios do verdadeiro cristianismo.
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